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Auxese
por Ana Claudia de Souza de Oliveira
Dromedários. Todos os olhos na entrada do poço se voltaram para aqueles bichos enormes, horrendos, com aquelas “cacundas”, gritavam os moleques com suas barrigas repletas de bichas, assim como seus cérebros eram recheados de folguedos. O mais interessante é o que viria logo atrás: Um velho homem cego, tangendo os animais como se tais fossem uma ruma de bois. Um cenário dantesco, que fizeram todo o pequeno vilarejo correr para a região do velho fosso.
Naquela terra do Baixa da Égua, tão longe que doía, onde tudo de tiquinho virava um “tantão”, onde todos os homens e meninos nasciam de cabeça grande e as mulheres sofriam por ter muito pé, chapada que produzia gente com mais soberba do que coração, as novidades de boa aparência eram logo benquistas enquanto as de menos apreço de revés pisava tal chão.
Ali o calor estava tão causticante que o lugar da fonte parecia ser o mais aprazível de se ficar. Mas ao contarem o número de animais e sua aparente sede implacável e a incapacidade do homem a olhos vistos, os espectadores curiosos trataram de dispersar, ao perceber o que poderia esperá-los.
- Chega! Chega! Isso é hora de vocês caparem o gato? – berrou Sinhá Tonha, inutilmente, diante da debandada geral.
É que seis cavalos gigantes de corcovas duplas significavam muita água para ser tirada do poço, já que cada um daqueles animais deveria consumir no mínimo sessenta litros de água. E não seria um apenas, seriam seis. Era trabalho para um dia e talvez ainda assim não desse vencimento. Com a mesma velocidade que as mulheres, as donas da fonte, chegaram, elas se foram, que nem serpentes a se esconderem debaixo das pedras, ao sinal de qualquer perigo.
Na contramão, chegava Rebeca ou Bea, a peste do agreste. Órfã de mãe aos dois anos, acabou sendo criada pela madrasta, um meio irmão mais velho assim como duas irmãs mais novas, a quem ela denominara de Cosme e Damião, devido às artimanhas que aprontavam, sempre juntas e em grande parte contra a irmã “azarada”.
- Êêê, Bea! – os cricris esguelavam em côro ao ver a matuta chegar esbaforida. – Se lascou!
- Pronto. Tô aqui. – estancou diante dos animais e do cego branchur, como se atendesse a um chamado. E realmente era. Só que o chamado de um vin-vin, e Bea sabia que um canto especial do passarinho em época de seca no sertão, era o chamado do amor. E quando o amor chamava, com força, com sentimento, de suas garras, igual falcão, o coração não escapulia.
- Eita! Mas será ele? Ao contrário do cego à sua frente, ela via contudo, não cria.
E o velho, tão eficiente na audição e olfato quanto era deficiente na visão, sendo capaz de reconhecer um animal pelo cheiro ou quem era a pessoa só pelo andar dela, também era dono de uma sabedoria mágica, razão maior que o levara até ali. Naquele momento concluiu que sua vida inteira, tudo o que fora, que fizera, tudo que bendizera ou maldizera, o que se tornara, o trouxera até ali. Aquela seria a grande missão da sua vida e desde que dela tomara conhecimento, decidira não falhar.
- Eu sou um pobre velho, tangedor de camelos, teria alguém por caridade para me ajudar? Tenho sede e mais ainda meus animais, depois de tanto por esse mundo andar.
E seu maior trunfo, além dos dromedários, seria o mistério. Ninguém poderia mesmo imaginar porque ele, um velho, dotado de escuridão em ambos os olhos, chegara ali, naquele oco de mundo, no fiofó do Ceará. E até aquela debandada das pessoas do poço havia sido providencial, resultado de um voto que fizera com os Céus, a fim de ter sucesso em tamanha empreitada.
E a verdade que buscava estava bem próxima dele, entre seus animais. Bea era como a menina mais bonita dali, a mais destemida também, com seus modos meio de menino-homem, meio de fada, ou seria bruxa? Sua madrasta alardeava sua desesperança de que a enteada fosse arrumar algum bem-querer, devido à suas esquisitices. Este último apelido fora dado por causa do grande apego e zelo que a menina tinha com os animais. Enquanto a madrasta e as filhas dela viam aquilo como uma doidice, a avó e o meio irmão sabiam que aquilo era um dom.
- A danada, de algum jeito, ou de nascença ou de crescença, aprendeu a falar com os bichos.
Rebeca conseguia, de um modo singular, se entender com as criaturas da natureza. Mas até então ela costumava fazê-lo com os animais domésticos: ratos, cães, cavalos, vacas. Ao ver os dromedários, ela não se conteve. Aqueles animais eram mais do que um circo inteiro, eram que nem uma família.
- São seus, esses cavalos de “cacunda”, sinhô?
Rebeca aprendera a avaliar as pessoas pelos bichos que tinham ou trabalhavam. E definitivamente duvidava que aqueles dromedários fossem daquele ceguinho mequetrefe. Mas ainda estava atordoada com o chamado do vin-vin e a aparição surpreendente daqueles animais tão distintos do que de costume em seu caminhar.
- Eita que os bichos tão babando de sede, seu moço.
- Sim, é das andanças que fizemos. Três dias de viagem por esse sertão, sem um mandacaru para nos socorrer.
- Isso aqui não é terra de mandacaru não, seu moço. Nem de vento nem de mata-fome. Aqui o que nos vale é o carrasco. Foi então que de repente ela deu fé da precisão do velho, torto de sede. – Bom, chega de lalaia. Vou buscar água na cisterna pr’ocês. E foi pegando a gamela, fazendo uma rodilha para a cabeça e descendo todos os potes primeiro.
A danada era além de tudo, inteligente. Já foi chamando os jegues para auxiliar na dura peleja. Assim amarrou bem forte as asas dos potes com corda e assim, após encher, fazia com que os jegues os puxassem até um rego onde os animais bebiam. Para o velho branchur, arrumou um tamburete para seu descanso, deu-lhe água de beber, até ele se fartar e depois ainda lhe trouxe garapa. O velho, mais do que encantado com a disposição dela a cuidar dele e dos animais, ficou todo baldeado ao ver a estima da menina pelos bichos e eles por ela.
- Ôxe, é verdade que vocês vieram das praias de Jericoacoara? Pegando-o desprevenido.
“Realmente, ela fala com os meus animais”, assuntava o forasteiro, cada vez mais ciente de que finalmente encontrara a razão de tanta busca.
- Sim, porém antes de mais nada, agora que estamos todos saciados e o dia se finda, poderia ter um dedo de prosa com seus pais, menina...
Só aí se deram conta de que não sabiam nem os seus respectivos nomes.
- Sou Gideão da Fonseca... ela sorriu já pensando na quadrinha que suas irmãzinhas as Cosme e Damião fariam diante de tal pista – Gideão da Fonseca, surdo, cego, mudo, um maracujá de gaveta.
- Eu sou Rebeca Auxiliadora da Cruz. Mas todos me chamam de Bea, Bea de seu Raimundo. Ainda que o pai não estivesse mais ali, vítima de tétano ao pisar num prego comido pela ferrugem, era assim que era conhecida. E era assim que todas as moças dali eram medidas. Sempre como filhas, irmãs ou mulheres de alguém. E sem um homem que as perfilhassem, era como se deixassem de existir. Passava a ser só “aquela uma”, sem lé nem cré. Um sapato sem pé.
Bea encaminhou-se com o velho cego até sua casa, que era uma das poucas estilo prato-de-banda, das mais antigas construções de alvenaria da chapada. Essas eram casas de no mínimo dois quartos, sempre com o do casal ou do chefe da família na frente com janela para a praça.
Assim, quase sempre todos os quartos ficavam praticamente do mesmo lado e rente a cozinha. As salas ficavam do lado oposto, com as portas em linha reta em direção ao quintal da casa ou a cozinha. Quase todas traziam o telhado caído para frente a partir da primeira sala e quarto tendo como suporte as biqueiras para levar à água das chuvas, que caíam em várias direções até um tonel, ou tonéis onde se poderia assim armazená-las, quando finalmente dava o ar de sua graça.
Por isso, quando começou a chover assim que o forasteiro colocou os pés na sua velha morada, Dona Nair, a madrasta, se encheu de calafrios como se já pressentisse algum mal a lhes atalhar.
- Boa tarde meu senhor, boa tarde pra quem chegou e boa tarde pra quem tá chegado. – saudou o estranho como se fosse Vossa Eminência. E daí foi dizendo o nome de cada membro presente da família, começando da sua avó, por ser de mais idade, como bem ensinava a cartilha do respeito e da sabedoria.
O cabra velho então se apresentou e deixou os salamaleques para dar conta de seu compromisso.
- Sou empregado do irmão de vosso pai e esposo falecido, Isidoro Matias, homem de muitas posses lá na capital, cujo filho Isaque, já avançado da idade, acabou de perder a mãe e o pai então deu fé de que o seu filho precisava se fazer homem, a fim de que ele com tanta idade, possa seguir o caminho de toda a Terra. – Nunca tantos olhos ficaram assim vidrados sobre ele. - Então ele quase me implorou que viesse aqui em meio aos seus entes que há tanto não via há tempos para levar daqui uma mulher digna de seu único e precioso filho.
O homem contou então tudo que antecedera até sua presença ali, de como fizera um voto ao grande Criador da Terra para que Ele lhe trouxesse nas mãos igual um pássaro vin-vin aquela que seria a pessoa perfeita pro seu patrãozinho.
Nessa altura do campeonato, as Cosme e Damião já passavam um café novo e serviam o cego de cuzcuz, biju e bolo de puba, como se ainda pudessem se qualificar. Sem falar na vizinhança que se esgueirava pelas paredes e muros para saber de antemão o dito assunto que trouxera de tamanha lonjura aquele pobre homem.
Foi quando após toda aquela extensa prosa, a madrasta, com ar de comando, concluiu:
- Então o senhor está aqui para pedir a mão de uma das minhas filhas em casamento pro filho de meu cunhado, é isso?
- Isso. E como prova de minhas sinceras pretensões, trouxe como dote, algumas jóias de família, panos de tecidos finos e.. os camelos. – Foi um Ó geral em todo o povoado.
- Mas já fizestes a escolha? – questionou, receosa.
- E como não escolher sua enteada, Rebeca, depois dela haver tratado a mim e aos animais com tanta candura e desprendimento?
- Avalie! Ela nem é a mais bonita! – disseram as gêmeas em consonância, já nadando no despeito e no remorso de terem fugido do batente.
- Por isso, fui mandado para buscá-la. Meu patrão queria que os olhos não se encantassem mais com a aparência do que com o coração e o caráter. E não existe moça mais bela do que a que se compadece dos menos privilegiados, que usa a obra de suas mãos em proveito do alheio. A que enche sua existência de atos sagrados, como o de árduo trabalho. Por isso, quero levá-la agora para meu senhor.
- Agora entendo. – murmurou Bea com seus botões, lembrando do canto do vin-vin.
- Ela é uma bruxa, uma destrambelhada. – Atacou a madrasta como se denegrindo uma, elevasse o proceder agora insensato das outras.
- Basta! – anunciou a avó. – A “questã” agora é só uma: Filha, você quer ir com esse moço, para cumprir com seu destino?
- Sim, minha avó. Esse é meu chamado. E quando o destino risca, a ninguém cabe apagar esse risco. Com certeza, eu irei.
- Sua “tança”, você nem o conhece. – temeu o irmão.
- Ele também sequer botou os olhos em mim, irmão. Eu irei e já.
- Sim, não há mais o que esperar. Das voltas que o mundo dá, o tempo já não tem mais volta. Precisamos partir e agora.
Bea apanhou umas mudas de roupa, a foto da família e a correntinha da mãe, única lembrança que herdara da morte. A partir do passar do beiral daquela porta, tudo que restaria para ela, e disso sabia bem, seriam as heranças da morte.
Quando ela subiu num dos dromedários, o único que retornaria como sendo dela, o sábio homem pensou em quão afortunado era e quão mais felizardo seria seu patrãozinho ao receber tal pérola nas mãos. Não pode ver quando isso se deu, e foi na fraqueza de seus olhos que encontrou a beleza que só quem enxerga com o olhar da alma encontra. Naquela cisterna entrara uma menina e saíra uma rainha.
This piece was published in 2023 as part of the Around the World in Mormon Literature contest by the Mormon Lit Lab. Sign up for our newsletter for future updates.
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